De longe dava para avistar o uniforme laranja dos funcionários da Prefeitura na entrada da Praça da Nascente, também conhecida como Homero Silva. Daniel Caballero, autor do projeto Cerrado Infinito, ficou imediatamente preocupado:
– Preciso avisar que eles não podem arrancar as plantas do nosso projeto. Todo mundo acha que todo mato com mais de 30 centímetros de altura é perigoso e serve para esconder bandidos.
De fato, a ordem para a equipe de Conservação de áreas ajardinadas era passar a faca em tudo quanto era mato alto da praça, sem distinção. Mas se você olhar bem, no meio do mato, há um museu de plantas que conta um pouco mais da história de São Paulo, quando a cidade ainda era a São Paulo dos Campos de Piratininga.
Ao contrário do que se pensa, quando os europeus chegaram por aqui não encontraram só Mata Atlântica e vegetação de floresta. Boa parte da nossa cidade, inclusive na região da Pompéia, era formada por campos de cerrado que a gente só costuma associar ao centro-oeste brasileiro.
Em pouco tempo, essa vegetação baixa e rasteira foi sendo extinta e as plantas típicas do cerrado paulista foram desaparecendo. “Nós já destruímos metade do cerrado do nosso país. A outra metade está sendo destruída de forma tão acelerada que estudiosos dizem ser um processo irreversível. O cerrado está condenado e em mais ou menos 14 anos teremos liquidado esse tipo de vegetação”, conta Daniel.
Diante deste cenário, o artista plástico, que é morador aqui do bairro, decidiu criar o Cerrado Infinito. Há 15 meses, ele sai à caça de plantas do cerrado paulista em beira de estrada e terrenos baldios para transplantá-las na Praça da Nascente.
Quase todos os dias, vai até a praça para regar as plantas com a água das nascentes do Córrego Água Preta, que também ficam por ali. Aos sábados, se reúne com outros voluntários para cuidar do projeto, transplantar mais espécies que achou pelos becos da cidade, cultivar novas sementes e retirar plantas invasoras que comprometem o crescimento do cerrado por ali. “Acho que desde que comecei este projeto faltei dois sábados. Em todos os outros estava por aqui”, lembra Daniel.
Já são mais de 50 espécies do cerrado paulista na Praça da Nascente, entre elas a cidreira-limão, o ipê-amarelo, a vassourinha, a dormideira, a carqueja, a língua de tucano, o capim barba de bode, o araçá, o milho de grilo e a canela de velho. “Aqui não há mudas compradas, elas são todas nativas de uma cidade de antes dos prédios e que sobreviveram à especulação imobiliária. São plantas guerreiras e tratadas como lixo”, explica Daniel. O artista plástico faz questão de ressaltar que o Cerrado Infinito não é um projeto de paisagismo. Além de salvar essa vegetação da extinção, a ideia é trazer as plantas sobreviventes para uma praça pública e dar um novo significado a elas. “É mostrar que essa é a natureza real que temos dentro da cidade.”
Para isso, Daniel e sua turma de voluntários estão montando o que eles chamam de “trilha inútil” com as espécies do cerrado. “Onde estamos agora era um barranco onde era impossível subir. As pessoas não ficavam aqui em cima. Então criamos essa trilha para aproveitar ao máximo esse terreno, mas ela funciona como um anti-atalho. A ideia é fazer com que a pessoa seja obrigada a passar por ela toda, perder um pouquinho mais de tempo, encompridar o caminho, mas olhar para as plantas e entender o que elas significam.”
Além de recontar a história de como era o nosso bairro e a nossa cidade, o projeto Cerrado Infinito serve como um viveiro para que, no futuro, ele se reproduza e seja suficiente para dar vida a outros cerrados em outras praças, perpetuamente. “Só precisamos de mais voluntários aqui e em todas as regiões de São Paulo para isso”, garante Daniel. A primeira extensão do projeto já existe, na Escola Estadual Jardim das Camélias, em Itaquera. “Eles também montaram seu cerrado dentro da escola com plantas que vieram do nosso bairro.”
Ao longo dos 15 meses de Cerrado Infinito, Daniel se deu conta de que também era um projeto político. “Realizamos de tempos em tempos o Piquenique Descolonization para mostrar que a natureza está sendo erradicada e usada para a indústria do paisagismo. Admiramos o que é de fora, mas tratamos como lixo o que temos aqui dentro e isso acontece com nossos jardins. Temos o hábito de montar paisagens com plantas estrangeiras que não são autossuficientes e atear fogo no nosso cerrado, achar o mato feio, considerar praga algumas dessas plantas. É como ir à Groenlândia e encontrar o Deserto do Saara por lá porque eles acham que areia é chique”, brinca.
Conforme Daniel ia explicando o que era o projeto para a equipe da Prefeitura, um dos funcionários relembrava também os tempos de infância, brincando com a dormideira: “Meu Deus, quanto tempo eu não via essa planta! Costumava ver muitas delas em Pirituba, mas foram sumindo”. Pirituba também tinha seus campos de cerrado.
“As pessoas mais antigas vêm aqui e contam histórias sobre as plantas, sobre o que viam. Elas dizem: ‘Essa planta eu não vejo há 40 anos’. Uma senhora uma vez disse que passava pela Praça da Nascente antes de ir para a escola e ia comendo araçá até lá. Outro senhor lembrou que pegavam capim barba de bode e faziam guirlandas para a época de São João ou o recheio dos bonecos para a malhação do Judas”, conta Daniel.
A história de São Paulo está viva na Pompéia, sendo replantada e recontada todo dia um pouquinho mais.
Daniel Caballero costuma receber escolas e explicar a vegetação de cerrado para os estudantes ali na Praça da Nascente. Para quem tem interesse em visitar o projeto ou ajudá-lo aos sábados, é só ir até a Praça da Nascente (Praça Homero Silva), que fica bem pertinho da Avenida Pompéia, na altura do número 2089.
Veja mais fotos do projeto Cerrado Infinito na galeria de fotos:
1 comentário
Linda matéria!
Amo andar no Cerrado Infinito. Muito bom mesmo.